Vovó Denize
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A voz de Carmélia Alves saía do rádio antigo da cozinha cantando sobre um sabiá preso na gaiola, enquanto vovó Denize descascava batatas com a precisão de um cirurgião e a velocidade de quem criou quatro filhos praticamente sozinha. Eu, aos sete anos, sentado na cadeirinha ao lado do fogão, observava suas mãos calejadas transformarem legumes em uma sopa que alimentaria toda a família extensa que se reunia aos domingos.
"Para com essa cara de bobo, menino", dizia sem tirar os olhos das batatas. "Fica aí parado olhando as moscas voarem." Mas havia carinho disfarçado na bronca, como havia amor escondido por trás daquela rigidez que a vida lhe havia ensinado ainda jovem, quando ficou viúva com quatro crianças jovens e pouca perspectiva além da própria força de vontade.
Vovó Denize era feita de contradições que levei anos para decifrar. Mulher de poucos afagos e muitas ações, de silêncios eloquentes e broncas certeiras. Havia aprendido a amar de forma prática: amor era comida na mesa, roupa lavada, remédio na hora certa, não palavras doces ou carinhos demorados. "Quanto abraço menino! Um só já tá bom!", costumava dizer, quando quase em tom de provocação, eu a enchia de beijos e abraços.
Pois eu era seu oposto complementar: criança sensível que via poesia até nas formigas subindo pela parede, que inventava filmes épicos de amor aos nove anos porque havia me apaixonado pela Thaís, da terceira série, e criava roteiros mentais onde éramos protagonistas de romances que rivalizavam com as novelas do Vale a Pena Ver de Novo. "Esse menino vive no mundo da lua", vovó suspirava, balançando a cabeça, mas eu percebia um brilho diferente em seus olhos quando contava sobre meus devaneios amorosos.
"A vida não é filme, rapaz", me dizia quando eu aparecia em casa suspirando pela menina da semana. "Amor é coisa séria, não é brincadeira de criança." Mas então me preparava um lanche especial e ouvia, com a paciência que reservava apenas para mim, os detalhes da minha mais nova paixão platônica. Era sua forma de me ensinar que sonhar não era proibido, desde que eu mantivesse os pés no chão.
Aos domingos, depois do almoço, quando a casa se esvaziava e ficávamos apenas nós dois, vovó baixava um pouco a guarda. Sentava na poltrona e me contava histórias da juventude, nunca da viuvez, essa ferida ela mantinha bem guardada. Falava do tempo em que dançava bolero nas festas da cidade, quando tinha dezoito anos e o mundo inteiro pela frente.
"Sabe o que aprendi, meu filho?", disse numa dessas tardes, enquanto eu organizava minha coleção de figurinhas ao lado de sua cadeira. "Que a vida é que nem tempestade: quando vem, não adianta chorar ou se esconder. Tem que enfrentar de peito aberto e cabeça erguida. Depois que passa, a gente fica mais forte." Era sua versão particular da filosofia de Nietzsche, embora ela jamais tivesse ouvido falar do filósofo alemão.
Cresci bebendo dessas lições práticas disfarçadas de conversas casuais. Quando chorei porque Mariana, da quinta série, havia dito que não gostava de mim, vovó não me consolou com palavras doces. Em vez disso, disse: "Dor de amor é que nem dor de dente, menino. Dói muito, mas passa. E quando passa, a gente fica imune por um tempo." Era sua maneira de me ensinar que a rejeição não mata, apenas ensina.
Os anos passaram, e eu fui crescendo entre os conselhos práticos da vovó e meus sonhos românticos incuráveis. Ela me ensinou que trabalho dignifica, que palavra dada é dívida contraída, que "quem não tem competência não se estabelece". Eu a ensinava, sem saber, que ainda era possível encontrar beleza no mundo, que emoções não eram sinais de fraqueza, que às vezes vale a pena sonhar alto.
"Você me faz lembrar do seu avô", ela disse uma vez, e foi o maior elogio que recebi na vida. "Ele também via coisas que os outros não viam. Também acreditava em coisas impossíveis." E pela primeira vez, percebi uma rachadura em sua armadura emocional, uma saudade que ela havia aprendido a carregar em silêncio durante décadas.
Quando saí da cidade para estudar, nossa relação se transformou. As visitas de fim de semana se tornaram ligações telefônicas regulares, onde ela perguntava se eu estava comendo direito e eu contava sobre a nova namorada, sempre esperando sua aprovação disfarçada de comentário pragmático. "Essa parece mais centrada que a anterior", era sua forma de dizer que gostava da escolha.
Aos setenta e poucos anos, quando finalmente se aposentou depois de trabalhar muito por quase cinquenta anos, vovó Denize descobriu o câncer. A notícia chegou como um soco no estômago: a mulher que eu considerava indestrutível, que havia enfrentado a viuvez, a criação dos filhos, as longas jornadas de trabalho, agora enfrentava o mais implacável dos adversários.
Comecei a voltar para casa toda semana. Eram três horas de viagem que eu fazia religiosamente. Foi nesse período que nossa relação atingiu uma profundidade que eu jamais imaginaria possível.
"Sabe o que eu descobri, menino?", disse numa tarde, enquanto ela descansava em sua cama. "Que a vida é muito mais simples do que a gente pensa. A gente complica tudo, mas no final só importa mesmo o amor que a gente deu e recebeu."
Naqueles meses, vovó me ensinou coisas que nenhum livro havia conseguido. Me ensinou que coragem não é ausência de medo, mas escolher fazer o que precisa ser feito, mesmo com medo. "Estou com medo, sim", confessou numa noite em que a dor estava mais forte. "Mas medo não mata ninguém. Quem mata é a desistência."
Aprendi também que ela sempre havia sido muito mais sensível do que demonstrava. "Suas histórias de amor me faziam bem", confessou um dia. "Me lembravam que ainda existia poesia no mundo. Eu só não sabia como dizer isso para você." Era sua forma de pedir desculpas pelos anos de pragmatismo excessivo, de me mostrar que minha sensibilidade sempre fora valorizada, apenas de forma silenciosa.
"Você sabe que eu te amo, né, menino?", disse numa visita, e aquelas palavras valeram por todas as demonstrações de carinho que eu achava que havia perdido. "Eu só nunca soube como mostrar direito. Achava que cuidar era suficiente. Mas agora entendo que às vezes a gente precisa falar também."
Foi ela quem me ensinou a diferença entre amar e cuidar. "Cuidar é o que você faz", explicou. "Amar é por que você faz. Eu sempre amei, só não sabia que precisava dizer." Era uma lição sobre a importância das palavras que Rainer Maria Rilke teria apreciado: às vezes é preciso nomear o amor para que ele ganhe sua verdadeira dimensão.
Na última vez que nos vimos, ela estava muito fraca, mas seus olhos mantinham aquela lucidez que sempre a caracterizou. Me pediu para tocar no violão uma canção do Oswaldo Montenegro, que dizia “quando eu não estiver por perto, canta aquela música que a gente ria. É tudo que eu cantaria e quando eu for embora você cantará”, e na sequência, vovó segurava minha mão com uma força surpreendente para alguém em seu estado.
“Lembra quando você era pequeno e ficava olhando as estrelas no quintal?", perguntou com a voz quase sussurrada. "Você olhava enquanto ouvia essa música, chamada Estrelas. Na época, eu te achava um pouco exagerado. Hoje penso que talvez fosse mesmo, mas ouvir a música Estrelas enquanto olhava as estrelas, hoje me parece bonito." E sorriu daquele jeito que eu conhecia desde criança, o sorriso que guardava para os momentos em que se permitia acreditar em algo maior.
"Quero que você continue vendo beleza nas coisas pequenas", disse. "Continue acreditando no amor, continue sonhando. O mundo precisa de pessoas como você. Eu levei uma vida inteira para entender que a sensibilidade é uma força, não uma fraqueza.”
Vovó partiu numa madrugada, em um dia de semana, que eu estava em outra cidade. A enfermeira disse que seus últimos momentos foram tranquilos, que ela havia pedido para ligarem o rádio e dormido ouvindo música.
No velório, reencontrei histórias que ela nunca havia me contado. Vizinhos falando de como ela era uma escuta mais que ativa na volta das missas, de como sempre conseguia juntar doações para quem precisava, de como consolava outras viúvas com a sabedoria de quem conhecia profundamente aquela dor. Descobri que sua aparente dureza era apenas a carapaça que protegia um coração que precisava respirar.
Hoje, quando me pego (poucas vezes) sendo prático demais, lembro de sua lição sobre a importância dos sonhos. Quando me pego (muitas vezes) sonhando demais, lembro de seus ensinamentos sobre manter os pés no chão. Ela me ensinou que força e sensibilidade não são opostos, são complementos. Que amar é cuidar, mas também é falar. Que a vida é simples quando a gente não complica com expectativas impossíveis.
Às vezes, quando escuto Carmélia Alves cantando "sabiá responde de lá, não chores que eu vou voltar”, lembro da vovó Denize descascando batatas na cozinha e ensinando, sem saber, que amor é verbo de ação. E quando ouço Oswaldo Montenegro cantando Estrelas, lembro de suas palavras sobre continuar vendo beleza em todas as coisas.
Porque no final das contas, vovó me ensinou a mais preciosa das lições: que somos feitos de luz, e que isso nos torna responsáveis por espalhar essa luz através do amor que damos e recebemos, mas que é preciso transbordar antes de dar. Cada gesto de cuidado, cada palavra de carinho, cada sonho compartilhado é uma forma de honrar o tempo que nos foi concedido neste breve lapso de existência.
E que talvez, apenas talvez, quando partirmos, continuemos brilhando na memória de quem amamos, como ela continua brilhando e me relembrando diariamente o transbordar do amor.
