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O Colecionador de Silêncios Musicais

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Conheci João numa tarde de sábado, no fundo de um sebo que vendia discos de vinil numa rua esquecida do centro da cidade. Ele estava ali, agachado entre pilhas de LPs empoeirados, com a paciência de um arqueólogo que acabara de descobrir um sítio promissor. Nas mãos, segurava um disco do Clube da Esquina, como quem segura uma relíquia sagrada.

"Este aqui", disse ele, percebendo meu olhar curioso, "mudou minha vida aos dezessete anos." E foi assim que começamos uma conversa que se estenderia por horas, primeiro ali no sebo, depois num boteco próximo, e que me fez entender uma das distinções mais importantes da vida moderna: a diferença entre estar só e se sentir sozinho.

João tinha sessenta e dois anos e uma coleção de três mil discos organizados não por ordem alfabética ou cronológica, mas por "momentos da alma", como ele dizia. Havia os discos para domingos chuvosos, os para noites de insônia, os para quando a saudade apertava, os para celebrar pequenas vitórias. "Cada disco", explicava, "é uma porta para um estado de espírito. Mas essas passagens só se abrem quando você está preparado para entrar sozinho."

Ele me contou que começou a colecionar vinis ainda jovem, mas foi só depois dos quarenta, quando o casamento terminou e os filhos saíram de casa, que descobriu o verdadeiro tesouro de sua coleção: ela o ensinou a diferença entre solitude e solidão.

"A solidão", disse ele, mexendo o açúcar no café já frio, "é quando você se sente desconectado do mundo, como se fosse um rádio fora de sintonia, captando apenas ruídos. Já a solitude é quando você sintoniza na sua própria frequência e descobre que, mesmo sozinho, está em boa companhia."

João passou anos cultivando essa arte da solitude. Chegava em casa depois do trabalho, preparava um chá, escolhia um disco com o cuidado de quem escolhe as palavras para uma declaração de amor, e se sentava na poltrona que havia herdado do pai. Ali, entre as primeiras notas e o último acorde, ele aprendia mais e mais sobre seu universo particular. "Os discos eram espelhos", dizia. "Tom Jobim me mostrava minha melancolia, Elis Regina me apresentava minha força, Cartola me ensinava sobre resistência."

Mas a grande descoberta veio quando percebeu que essa intimidade consigo mesmo, longe de isolá-lo, na verdade o preparava para conexões mais genuínas com outros. "Quando você se conhece de verdade, quando aceita sua própria companhia, fica mais fácil reconhecer pessoas que vibram na mesma frequência."

Foi assim que João começou a frequentar shows. Não os grandes espetáculos em estádios, mas aqueles intimistas em bares, centros culturais, saraus de poesia com música ao vivo. "Descobri que existem tribos invisíveis espalhadas pela cidade", contava, com os olhos brilhando. "Pessoas que, como eu, entendiam que música é mais que entretenimento – é linguagem de comunicação entre almas."

Nos shows, João não ia para fugir da solidão, mas para compartilhar sua solitude. A diferença era sutil mas fundamental. Ele chegava completo, não precisando que os outros o preenchessem, e por isso mesmo conseguia estabelecer conexões mais verdadeiras. "Quando você não está desesperado por companhia, consegue escolher melhor com quem quer estar."

Assim nasceram amizades improváveis: com Marta, uma professora aposentada que também colecionava vinis de bossa nova; com Rodrigo, um jovem músico que tocava violão nas madrugadas do Largo do Arouche; com Dona Carmen, uma senhora que sabia de cor todas as letras de Lupicínio Rodrigues e frequentava os mesmos saraus.

João filosofava, "essas amizades nasceram do silêncio compartilhado. Nos shows, ficávamos lado a lado, cada um mergulhado na própria experiência musical, mas conectados pela mesma emoção. Era como estar sozinho em companhia, ou acompanhado na solidão."

Observando João, comecei a entender por que tantas pessoas confundem solitude com solidão e, por medo desta, fogem daquela. Vivemos numa época em que o silêncio foi banido, em que toda pausa precisa ser preenchida com estímulos, notificações, dopamina, conversas vazias. Perdemos a capacidade de ficar na boa companhia de nós mesmos.

"A solitude", João me ensinou naquela tarde, "é como um disco de vinil: precisa de pausa e respiração para mostrar sua qualidade. Não dá para escutar com pressa, não dá para pular faixas. É preciso sentar, relaxar, deixar que o som tome conta do ambiente e da alma."

E talvez seja essa a lição mais bonita que aprendi com aquele colecionador de silêncios musicais: que as melhores conexões humanas nascem quando paramos de fugir de nós mesmos. Quando aprendemos a nos ouvir no silêncio, conseguimos ouvir melhor os outros, no ruído do mundo.

Hoje, sempre que passo por aquele sebo, lembro de João. Comprei meu primeiro vinil naquele dia – um Milton Nascimento que ele recomendou "para começar a trilhar o caminho de volta ao coração". Ainda estou aprendendo a arte da solitude, ainda descobrindo que estar sozinho pode ser a porta de entrada para as mais belas companhias.

Porque, no fim das contas, quem não sabe estar consigo mesmo está quase sempre em má companhia, mesmo cercado de multidões. E quem aprende a cultivar sua própria música interior descobre que o mundo está cheio de pessoas dispostas a dançar na mesma melodia.

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