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Reaprendendo a dançar

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Foi quando ouvi "Quizás, Quizás, Quizás" tocando no rádio do táxi, voltando de mais uma reunião corporativa sem sentido, que senti o peito apertar de uma forma que não conseguia explicar. A voz dos Los Panchos ecoava naquele trânsito infernal de São Paulo, e de repente eu não estava mais ali. Estava de volta aos quinze anos, sentado numa cadeira de plástico no fundo de um salão de dança em Varginha, observando vovó Helena e tia Conceição deslizarem pelo chão como se flutuassem. 

"Esse menino vai ficar aqui sentado a tarde toda?", perguntava o professor Alfredo, um senhor elegante de bigode grisalho que tinha paciência infinita com suas duas alunas mais assíduas. "Vem cá, rapaz, aprenda a fazer uma dama feliz." E eu, vermelho de vergonha, me levantava para tentar acompanhar os passos que elas executavam com a graça de quem nasceu dançando.

Quarta-feira, cinco e meia da tarde. Era nosso compromisso sagrado há quase dois anos. Vovó Helena, aos setenta, e tia Conceição, sua irmã mais velha de setenta e três, haviam decidido que nunca era tarde para aprender a dançar. "A vida já nos tirou tantas coisas", dizia vovó, ajeitando o vestido florido que reservava para as aulas. "Pelo menos a dança ninguém vai conseguir tirar da gente."

Eu ia junto porque sabia que aqueles momentos eram preciosos, de uma forma que eu ainda não compreendia completamente. Havia algo de mágico em ver duas senhoras que haviam sobrevivido a décadas de dificuldades, se entregarem com tamanha alegria àqueles passos de bolero que o professor Alfredo ensinava com a dedicação de um artista.

"Noche de Ronda" era a favorita de tia Conceição. Quando a música começava, ela fechava os olhos e se movia como se estivesse dançando com algum amor perdido da juventude. "Essa música fala da alma, menino", me explicava durante os intervalos. "Fala de tudo que a gente sente mas não consegue dizer." E eu, que ainda estava descobrindo o que significava sentir, ouvia aquelas palavras como quem recebe uma profecia.

Vovó Helena preferia "Piel Canela". Dizia que a melodia a fazia lembrar do vovô, que havia partido tantos anos antes. "Ele tinha um jeito especial de me olhar quando essa música tocava", contava, e havia em seus olhos uma saudade que me ensinava, sem palavras, sobre a profundidade do amor verdadeiro. "Um dia você vai entender, menino. Um dia você vai saber o que é dançar com alguém que conhece sua alma."

Mas a vida, como costuma fazer, me levou para outros caminhos. A faculdade chegou, depois o estágio, o primeiro emprego, o casamento com Laura, o nascimento do Pedro. Construí uma carreira sólida em marketing, uma casa no padrão esperado, uma rotina que funcionava como um relógio suíço. Era tudo muito correto, muito previsível, muito seguro. Era tudo muito vazio.

Vovó Helena partiu quando Pedro tinha dois anos. Foi durante o sono, tranquila, como quem simplesmente decidiu que já havia dançado suficiente nesta vida. Tia Conceição nunca se recuperou completamente da perda da irmã. Dois anos depois, começaram os primeiros sinais do Alzheimer: nomes esquecidos, rostos que não reconhecia, memórias que se dissolviam como açúcar na chuva.

Durante dez anos, assisti a tia Conceição se despedir lentamente de si mesma. Era cruel e belo ao mesmo tempo: nos momentos de lucidez, ela ainda cantarolava "Noche de Ronda" e perguntava se eu havia aprendido a dançar direito. "A dança nunca abandona a gente", dizia, mesmo quando já não conseguia lembrar meu nome. "Fica aqui dentro", e apontava para o peito, "onde as palavras não chegam.

"Quando ela partiu, eu estava com trinta e oito anos e a sensação de que havia perdido não apenas uma tia querida, mas também uma parte de mim mesmo que eu nem sabia que existia. Laura e eu já estávamos vivendo como estranhos educados na mesma casa. O divórcio veio naturalmente, sem dramas nem mágoas, apenas o reconhecimento de que éramos duas pessoas boas que não conseguiam mais se fazer felizes.

Por sorte, Pedro se tornou meu melhor amigo. Dividimos a guarda sem conflitos, e descobri que ser pai presente em tempo parcial era muito melhor do que ser pai ausente em tempo integral. Era ele quem me escutava quando eu falava sobre a sensação de estar vivendo a vida errada, sobre a certeza de que havia perdido algo essencial pelo caminho.

Foi aos quarenta e dois que decidi mudar tudo. Saí da multinacional onde havia passado vinte anos subindo degraus que levavam a lugar nenhum e abri um pequeno negócio. Nada grandioso, apenas uma forma de viver com mais autenticidade. E foi nessa época que os boleros voltaram à minha vida.

Aconteceu por acaso, como as melhores coisas da vida. Estava organizando os pertences de tia Conceição quando encontrei uma coleção de discos dos Los Panchos que ela havia guardado durante décadas. Coloquei um no toca-discos antigo que estava na sala, e "Quizás, Quizás, Quizás" encheu o ambiente com aquela nostalgia doce que eu havia esquecido que existia.

Comecei a escutar aquelas canções obsessivamente. Descobri que as letras falavam de coisas que eu estava sentindo: a incerteza do amor, a saudade do que poderia ter sido, a beleza melancólica da vida. "Quizás, quizás, quizás" não era apenas uma canção sobre dúvida amorosa, era um hino à complexidade de existir, uma celebração do mistério que permeia todos os nossos relacionamentos.

"Pai, que música estranha você está ouvindo", Pedro comentou um dia, quando veio me visitar. Ele tinha dezessete anos e a arrogância natural da juventude. "Parece coisa de velho." Sorri e contei sobre as aulas de dança, sobre vovó Helena e tia Conceição, sobre como aquelas músicas guardavam memórias preciosas. Vi seus olhos se interessarem quando falei sobre a paixão que aquelas duas senhoras tinham pela vida.

"Que tal conhecermos de onde vem essa música?", sugeri numa inspiração. "Que tal irmos ao México e a Argentina nas próximas férias?" A ideia surgiu do nada, mas fazia todo sentido. Precisávamos de uma aventura, e eu precisava entender melhor aquele chamado que sentia toda vez que ouvia um bolero.

A viagem foi reveladora. No México, numa pequena casa noturna na Cidade do México, ouvi "Piel Canela" tocada ao vivo por um trio que poderia ter saído diretamente dos anos cinquenta. As vozes harmonizavam de uma forma que me fez lembrar de vovó Helena dizendo que a música falava da alma. Pedro, inicialmente cético, foi se deixando envolver pela atmosfera romântica daqueles lugares onde o tempo parecia suspenso.

"Entendo agora por que suas avós gostavam tanto disso", disse numa noite, após assistirmos a um show dançante de bolero. "Tem uma coisa nas letras que é... sei lá, verdadeira." E eu percebi que estava transmitindo para meu filho algo que havia recebido daquelas duas mulheres extraordinárias: a capacidade de se emocionar com a beleza simples da música bem feita.

Foi em Buenos Aires que me atrevi a dançar novamente. Numa milonga tradicional no bairro de San Telmo, uma senhora argentina de cabelos prateados me convidou para uma dança. "Você tem olhos de quem sabe o que significa um bolero", disse em espanhol carregado de sotaque portenho. "Vamos ver se seus pés acompanham seus olhos.

"Os primeiros passos foram desastrosos. Havia décadas que não dançava, e meu corpo parecia ter esquecido tudo que professor Alfredo havia ensinado. Mas então "Noche de Ronda" começou a tocar, e algo mágico aconteceu: meus pés encontraram o ritmo, meus braços lembraram de como conduzir, e por alguns minutos eu não era mais o executivo frustrado de quarenta e poucos anos, mas aquele adolescente que observava vovó Helena e tia Conceição flutuarem pelo salão.

"Ahora sí", disse minha parceira de dança, sorrindo. "Ahora usted está bailando con el corazón." E ela estava certa: pela primeira vez em décadas, eu estava fazendo algo com o coração, não apenas com a cabeça.

Pedro filmou aquele momento com o celular. Quando assistimos ao vídeo depois, no hotel, nos emocionamos juntos. "Pai", disse ele, "nunca te vi tão feliz quanto nesses três minutos dançando." E foi aí que entendi: eu havia passado anos procurando sucesso, estabilidade, reconhecimento, quando o que realmente precisava era dessa conexão com minha própria essência.Voltei do México e da Argentina transformado. Não de forma dramática, mas com uma clareza nova sobre o que realmente importava. Comecei a frequentar aulas de dança novamente, desta vez numa escola próxima de casa. Descobri que ainda era possível aprender, ainda era possível me emocionar, ainda era possível encontrar beleza nos gestos simples.

Hoje, sempre que ouço "Quizás, Quizás, Quizás", vovó Helena e tia Conceição voltam para a pista de dança da minha memória. Vejo suas figuras elegantes deslizando pelo chão, vejo professor Alfredo ajustando seus passos com a paciência de um santo, vejo meu eu adolescente observando tudo com os olhos arregalados de quem presencia algo sagrado.

Entendo agora que aquelas aulas não eram apenas sobre dança. Eram sobre coragem, sobre se permitir ser vulnerável, sobre encontrar graça na imperfeição dos movimentos. Eram sobre viver intensamente cada momento, sobre se entregar à música mesmo quando não se sabe exatamente para onde ela vai levar.

Pedro, hoje com vinte e dois anos, às vezes vai comigo às aulas de dança. Diz que quer aprender "por precaução", caso um dia precise impressionar alguma namorada. Mas eu vejo em seus olhos a mesma curiosidade que eu tinha aos quinze: a intuição de que ali se ensina algo muito mais profundo do que passos de dança.

"Noche de Ronda" continua sendo minha música favorita. Quando ela toca, fecho os olhos e me lembro de tia Conceição dizendo que a música fala de tudo que a gente sente mas não consegue dizer. Hoje sei que ela estava certa: há coisas na vida que só podem ser expressas através do movimento, do ritmo, da entrega completa à melodia.

E quando danço, sinto que estou honrando a memória daquelas duas mulheres extraordinárias que me ensinaram, sem palavras, que nunca é tarde para aprender algo novo, nunca é tarde para se permitir ser feliz, nunca é tarde para encontrar o caminho de volta à própria alma.

Afinal foi um bolero que me trouxe de volta para casa. 

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