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Sem o hábito da poesia e da filosofia, só nos resta a literalidade

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Ontem, no elevador, uma menina de uns quinze anos olhava fixamente para a tela do celular enquanto a mãe tentava puxar conversa. "Como foi a aula de literatura hoje?", perguntou, esperançosa. A resposta veio seca, sem tirar os olhos da tela: "Chata. Como sempre né mãe? A professora falou de uns poetas antigos que ninguém entende. Para que serve isso? Qual a chance de eu ter que usar isso na vida?"

Fiquei pensando nessa pergunta durante todo o trajeto até o meu andar. Para que serve a poesia? Para que serve Drummond falando de uma pedra no meio do caminho? Para que serve Cecília Meireles se debruçando sobre o vento na janela? Para que serve Manoel de Barros teimando em voar fora da asa? E me veio à mente uma constatação melancólica: estamos criando uma geração que só enxerga o que está na superfície, que vem perdendo o gosto pela descoberta do sentido oculto das coisas.

Não é culpa deles, é claro. Vivemos numa época de pressa desenfreada, onde tudo precisa ser explicado em trinta segundos, resumido em stories, traduzido em emojis. O mundo virou um grande manual de instruções: grave em quinze segundos, edite com essas ferramentas e dicas prontas, resultado imediato. A metáfora vem morrendo de inanição, a alegoria está se aposentando por falta de paciência, e o símbolo virando coisa de museu.

Lembro-me de quando era criança e minha avó me contava histórias antes de dormir. Não eram apenas narrativas simples, afinal eram universos inteiros que se abriam na minha imaginação. O lobo mau não era só um lobo mau; era o medo que todos temos dentro de nós. Chapeuzinho Vermelho não era apenas uma menina de capuz; era a inocência caminhando pelos perigos da vida. Hoje, essas mesmas histórias são dissecadas em análises literais: "Por que a menina foi sozinha pela floresta? Onde estavam os pais? Por que ninguém denunciou o lobo às autoridades?"

E não é só nas histórias infantis. Vejo jovens lendo textos filosóficos como se fossem bulas de remédio, procurando apenas a resposta final, o resumo executivo, a conclusão pronta para usar. Platão vira um meme sobre a caverna, Nietzsche se resume a frases motivacionais sobre a humanidade no Instagram, e Sócrates é apenas aquele cara que "só sabia que nada sabia" – como se isso fosse pouco.

A poesia, então, nem se fala. Virou coisa para concurso público ou prova de vestibular. "Professor, qual é a resposta certa sobre este verso?" Como se a poesia tivesse respostas certas, como se sua função fosse resolver equações e não desorganizar nossos sentimentos acomodados, bagunçar nossa lógica cartesiana, nos fazer sentir coisas que nem sabíamos que existiam, ou que nos ocupavam.

O curioso é que, ao abandonarmos a linguagem figurada, não ficamos mais inteligentes – ficamos mais pobres. Sim, porque a metáfora é uma forma de economia de linguagem. Em vez de explicar, ela nos faz sentir. Em vez de descrever, ela nos faz viver. Quando Fernando Pessoa diz que "navegar é preciso, viver não é preciso", ele não está dando dicas de navegação. E para uma geração que cresceu traduzindo tudo literalmente, essa frase vira nonsense. "Como assim viver não é preciso? Claro que é preciso viver!" E assim perdemos a beleza, a poesia, a possibilidade de múltiplas interpretações, a riqueza dos sentidos.

O problema é que quando perdemos o hábito da profundidade, quando tudo passa a ser literal, perdemos também a capacidade de lidar com as nuances da vida. A vida não é binária – ela não é só preto no branco, zero ou um, sim ou não. A vida é cheia de meio-tons, de entrelinhas, de silêncios eloquentes e palavras que dizem mais do que parecem.

Quem só enxerga o literal, tem dificuldade para compreender ironia, não percebe quando alguém está sendo sarcástico, não entende as entrelinhas de uma conversa. Fica vulnerável aos discursos simplistas, às soluções mágicas, aos charlatões que vendem verdades absolutas. Porque a filosofia e a poesia nos ensinam justamente o contrário: que as perguntas são mais interessantes que as respostas, que a dúvida é mais fértil que a certeza, que o mistério é mais instigante que a explicação.

Uma sociedade que abandona a linguagem simbólica é uma sociedade que empobrece a alma e que perde a capacidade de sonhar. Fica refém do imediato, do pragmático, do útil. E aí, quando a vida apresenta suas situações complexas, não sabemos mais como lidar com elas. Porque aprendemos apenas a somar e subtrair, nunca a sentir e intuir.

Por isso, talvez devêssemos resgatar o hábito de ler um poema antes de dormir, como quem toma um remédio para a alma. Ou de filosofar sobre pequenas coisas do cotidiano, como faziam os antigos gregos na praça pública. Não para virarmos intelectuais pedantes, mas para recuperarmos a capacidade de enxergar além do óbvio, de sentir além do superficial.

Porque, no fim das contas, a poesia e a filosofia não servem para nos tornarmos mais espertos ou impressionarmos alguém no jantar. Elas servem para nos devolver a infância perdida, aquela em que víamos bichos nas nuvens e ouvíamos histórias nas estrelas. Servem para nos lembrar que somos feitos de mistério e música, de perguntas sem resposta e respostas que inevitavelmente viram novas perguntas.

Num mundo que insiste em nos transformar em máquinas de produtividade e consumo, a poesia e a filosofia são atos de resistência. São formas de dizer: "Eu sou mais que minha utilidade, eu sou mais que minha função, eu sou um universo inteiro tentando se descobrir e se entender".

E quando aquela menina do elevador, descobrir que um poema pode fazer seu coração bater diferente, que uma reflexão filosófica pode iluminar um canto escuro da alma, talvez ela entenda que não há pergunta mais bonita que "para que serve isso?" – porque a resposta é sempre: para nos fazer lembrar que somos humanos, filosoficamente e poeticamente humanos.

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