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A arte de cobrar carinho

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Sou amigo de seu Alberto e dona Denize há algumas décadas, desde quando ainda eram namorados. Um casal sempre animado, prestativo, que atingiu o ápice de sua alegria com a chegada da menina Carla, um bebê que veio selar o conceito mais amplo de família, que eles tanto almejavam.

Como além de amigos, éramos vizinhos, estávamos sempre juntos em situações diversas, desde jantares e festas até em momentos delicados, como o que relatarei a seguir.

Numa tarde de terça-feira, recebi uma ligação de dona Denize, me pedindo que os encontrasse no hospital, pois precisavam de um amigo para compartilhar um momento de tensão: a abertura do resultado de um exame do seu Alberto. Quando cheguei na sala de espera, ele, aos setenta e cinco anos, segurava nervoso um envelope enquanto ela folheava uma revista sem ler, apenas para ocupar as mãos ansiosas. Foi quando chegou também Carla, a filha única, agora aos trinta e dois anos, com aquela pressa teatral de quem quer demonstrar sacrifício.

"Desculpem o atraso", disse, beijando a testa dos pais com gestos estudados, me acenando as mãos a distância, quase como se eu não estivesse no local. "Vocês não imaginam o dia que eu tive. Reunião atrás de reunião, o chefe impossível, e ainda precisei sair correndo para estar aqui com vocês." O suspiro que acompanhou as palavras era pesado, carregado de uma enorme exaustão.

Dona Denize imediatamente se desculpou: "Minha filha, você não precisava ter vindo. Sei como você está sobrecarregada." E ali, naquele gesto simples de uma mãe se sentindo culpada por necessitar da filha, eu presenciei mais uma vez a cena de uma peça que se repetia há anos.

Nos meses seguintes, as coisas seguiam se repetindo, sempre na mesma dinâmica: Carla chegava cansada, fazendo questão de enumerar seus sacrifícios. "Larguei tudo para estar aqui", "Não sei mais como dar conta de tudo", "Vocês não fazem ideia do que é minha rotina". E os pais seguiam carregando no peito sentimentos desequilibrados, como culpa, gratidão e o medo constante de estarem sendo um fardo.

O curioso é que seu Alberto e dona Denize viviam bem, tinham uma aposentadoria digna e a saúde razoável para a idade. A dependência que Carla criava era mais emocional do que prática, pois ela se fazia indispensável através do drama.

Mas havia algo mais sutil por trás dessa performance. Carla havia aprendido a transformar cada gesto de "sacrifício" numa moeda de troca. Depois de cada visita carregada de suspiros e lamentações, sempre vinha o pedido. "Pai, você sabe como estou apertada esse mês... depois de tudo que abri mão por vocês..." Ou então: "Preciso de uma ajudinha com o cartão de crédito, mas fico até constrangida de pedir..."

Seu Alberto, homem de coração mole, nunca conseguia negar. Como poderia? A filha havia "sacrificado" tanto por eles, havia "largado tudo" para estar ali. O dinheiro da aposentadoria, que poderia ser para o lazer merecido da idade, ia sendo drenado aos poucos, sempre acompanhado de uma justificativa emocional irrefutável.

"Ela é uma filha tão dedicada", dona Denize me disse uma vez, mas havia nos olhos da senhora uma tristeza que ia além da preocupação maternal – era o peso de quem presenciava um jogo e que não conseguia decifrar completamente, mas que sentia estar perdendo.

Carla tinha uma habilidade peculiar: transformava cada pedido dos pais numa montanha de lamentos pessoais, para depois transformar seus próprios pedidos numa consequência natural dos suposto sacrifícios. Uma ida ao médico virava "tive que cancelar três compromissos importantes", e posteriormente "vocês sabem como essa correria me prejudica financeiramente". Um almoço de domingo se tornava "mal tenho tempo para mim, mas claro que venho", seguido de "não consegui nem fazer minhas compras, agora vou ter que pedir delivery e vocês sabem como está caro".

Era como se ela tivesse criado um sistema bancário emocional, onde cada gesto de carinho era um depósito que autorizava saques futuros na conta dos pais.

O mais doloroso era observar como os pais, em uma generosidade ingênua, aceitavam essa dinâmica. Pediam cada vez menos para não incomodar, se desculpavam por existir, diminuíam suas próprias necessidades para não sobrecarregar a filha que, paradoxalmente, os sobrecarregava financeira e emocionalmente.

"Ontem ela disse que não está conseguindo dormir direito de tanto que se preocupa com a gente", seu Alberto me contou um dia, enquanto esperávamos o ônibus. "E ainda por cima está com dificuldades no trabalho por causa dessas preocupações. Às vezes penso que seria melhor se a gente se virasse sozinho, sabe? Para não dar tanto trabalho." E logo emendou, com a voz embargada: "Mas ela precisa tanto da nossa ajuda também..."

A estratégia da Carla era sutil, mas devastadoramente eficaz: ela nunca pedia dinheiro diretamente, nunca exigia favores. Em vez disso, construía um cenário onde a negativa se tornava impossível. Como negar ajuda a quem havia "sacrificado tudo" por você? Como não retribuir a "dedicação" de quem "largava tudo" para estar ao seu lado?

Era a mártir perfeita, que sofria alto, suspirava fundo, e fazia questão de que todos soubessem o tamanho da sua suposta dor, para depois cobrar, de forma quase imperceptível, a conta por tanta dedicação.

Então veio o infarto. Seu Alberto, numa manhã de sábado, sentiu o peito apertar e não resistiu. Partiu rápido, como quem tem pressa para não dar trabalho a ninguém – e talvez, inconscientemente, para não precisar mais carregar o peso de uma dívida emocional que nunca contraiu.

No velório, observei Carla receber os pêsames com uma performance impecável da filha de luto. "Ele sabia o quanto eu o amava", dizia para as pessoas. "Sempre fiz de tudo por ele." E talvez ela realmente acreditasse nisso, tal era sua capacidade de reescrever a própria narrativa.

Mas dona Denize, aos sessenta e oito anos, de repente se viu sozinha. E foi revelador observar como, na ausência da plateia que seu Alberto representava e principalmente, na ausência da fonte de recursos que ele constituía, Carla aos poucos foi perdendo o interesse em manter sua estratégia. As visitas se espaçaram e os telefonemas diminuíram.

"Sabe o que mais me dói?", dona Denize me confidenciou meses depois, numa tarde em que nos encontramos no banco. "É pensar que o Alberto morreu se sentindo culpado por existir, se sentindo em dívida com a filha. Que ele partiu achando que não tinha feito o suficiente, quando na verdade tinha feito até demais."

Saí daquele encontro pensando em quantos seus Albertos existem por aí, sendo consumidos lentamente pela culpa que filhos manipuladores plantam em seus corações. Pensando em quantas donas Denizes vivem se desculpando por desejar uma migalha, ao menos, de carinho.. Pensando em quantas Carlas transformam amor em sistema de cobrança.

Os relacionamentos mais tóxicos são aqueles que se disfarçam de amor, que se vestem de dedicação, que usam nossa bondade contra nós mesmos e que transformam nosso coração generoso numa conta bancária a ser sacada sob a justificativa de uma dedicação manipuladora.

E seu Alberto partiu carregando um peso que nunca foi dele, pagando uma dívida que nunca contraiu, se desculpando por uma generosidade que deveria ter sido celebrada, nunca cobrada.

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