O sabor da memória
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Estava eu numa daquelas reuniões corporativas intermináveis, daquelas que se estendem pela hora do almoço, quando Miguel pediu uma pausa para comer alguma coisa. "Só um minutinho", disse, saindo da sala. Voltou cinco minutos depois com um pão de queijo recheado de feijão numa marmitinha improvisada.
Os colegas fizeram cara de estranheza – que combinação esquisita para um empresário bem-sucedido que poderia pedir qualquer coisa do cardápio executivo. Mas eu notei algo diferente no olhar dele enquanto comia, uma expressão de quem não estava apenas se alimentando, mas revisitando algum lugar distante da memória.
"Desculpem", disse ele, percebendo os olhares. "É que toda vez que fico muito tempo sem comer isso, sinto como se estivesse traindo uma parte importante de mim mesmo."
A reunião terminou, os outros saíram, e ficamos só nós dois na sala. Foi quando Miguel me contou uma história que carrego comigo desde então, uma daquelas que nos lembram que por trás de cada sucesso existe sempre uma jornada que a gente nem imagina.
Aos quatorze anos, Miguel saiu do interior para a capital atrás de um sonho: jogar vôlei profissionalmente. Os pais, que mal conseguiam sustentar a família na cidade pequena, fizeram um sacrifício imenso para bancar o aluguel de um quarto que ele dividiria com outros meninos na mesma situação.
A rotina era militar: escola de manhã, treino de tarde, mais treino de noite. O clube fornecia café da manhã e almoço, mas o jantar ficava por conta de cada um. "Às vezes sobrava só o feijão do almoço que a gente guardava numa marmita velha. Era isso ou nada."
No caminho entre a casa e o clube, havia uma padaria pequena, daquelas de bairro que ainda fazem pão de queijo na hora. O dono era seu Osvaldo, um homem na casa dos sessenta que tinha aqueles olhos atentos de quem observa a vida passar pela porta do estabelecimento.
"No começo, eu só passava em frente e ficava sentindo o cheiro", contava Miguel. "Mas depois de umas duas semanas, seu Osvaldo notou que eu sempre passava no horário que ele estava fechando, sempre olhando com fome para os pães de queijo que sobravam na vitrine."
Um dia, seu Osvaldo simplesmente chamou o menino. "Ói, garoto. Esses pães aqui vão estragar mesmo. Leva para casa." E estendeu um saquinho com uns cinco pães de queijo frios, mas muito apetitosos.
Miguel chegou em casa naquela noite com o coração apertado de gratidão e uma fome que ia muito além do estômago. Abriu os pães de queijo, recheou com o feijão que havia sobrado do almoço, e fez o que viria a ser sua refeição preferida pelos próximos anos.
"Você não tem ideia", dizia ele, com os olhos marejados, "de como aquela combinação era gostosa. Não pelo sabor em si, mas pelo que representava. Era como se cada mordida me lembrasse que existiam pessoas boas no mundo, que eu não estava completamente sozinho."
A rotina se repetiu quase todos os dias. Seu Osvaldo nunca fez alarde, nunca comentou sobre a situação. Simplesmente, no fim do expediente, separava os pães que não tinham sido vendidos e os entregava para Miguel. "Vai que você conhece alguém que está com fome", dizia, sempre com a mesma frase, preservando a dignidade do menino.
"Só anos depois eu entendi a delicadeza daquele gesto", Miguel refletia. "Ele podia ter feito caridade explícita. Mas não. Ele fez questão de transformar aquilo numa parceria, como se eu estivesse fazendo um favor para ele ao levar os pães."
Miguel nunca virou jogador profissional – o sonho se desfez aos dezessete, quando uma lesão no tornozelo encerrou precocemente sua carreira. Mas permaneceu na cidade, terminou os estudos, trabalhou, empreendeu, cresceu. Hoje tem uma empresa de tecnologia que emprega mais de duzentas pessoas.
"Sabe o que mais me marca nessa história toda?", perguntou, guardando a marmitinha vazia na gaveta da mesa. "É que seu Osvaldo me ensinou, sem palavras, uma das lições mais importantes da vida: que a dignidade não está no que você tem, mas em como você trata e é tratado pelos outros."
Anos depois, quando já estava estabelecido, Miguel voltou à padaria para agradecer. Seu Osvaldo havia falecido dois anos antes, mas o filho assumira o negócio. Miguel contou a história, se emocionou, e desde então patrocina uma pequena ONG que oferece refeições para jovens atletas carentes.
"Mas por que continuo comendo pão de queijo com feijão?", ele sorriu, como se adivinhasse minha pergunta. "Porque esse sabor me lembra que a vida tem mais camadas do que a gente imagina. Me lembra que um gesto simples pode mudar o rumo de uma existência inteira. Me lembra de ser grato."
Saí daquela conversa pensando em quantas vezes passamos por padarias, por seu Osvaldos, por Migueis adolescentes, e não percebemos as histórias que se desenrolam bem debaixo do nosso nariz. Pensando em como às vezes os sabores mais estranhos carregam as memórias mais doces.
Desde então, aprendi que existem combinações que só fazem sentido quando conhecemos a receita completa: uma parte de necessidade, uma parte de solidariedade, e uma porção generosa de humanidade.
E que, no fim das contas, são esses os ingredientes que realmente alimentam a alma.
