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Cuide do seu amigo mais forte

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Ainda hoje, quando sinto o cheiro de vodka barata, misturada com qualquer coisa doce, meu estômago embrulha e meu coração aperta. Não pelo álcool em si, mas pelas memórias que esse aroma desperta. Memórias de uma época em que éramos jovens, sem dinheiro, mas ricos de uma amizade sem precedentes. Memórias do Paulo chegando aos nossos encontros com aquele sorriso largo, carregando garrafas da tal vodka Troscovi, como se fossem tesouros.

"Vocês têm noção que viajávamos pelo menos uma vez por mês?", Mari costumava perguntar quando o assunto era sobre os velhos tempos da faculdade. "Não tínhamos dinheiro para nada e conseguíamos fazer praticamente tudo o que queríamos." Era uma contradição que só a juventude explica: éramos pobres materialmente, mas milionários em experiências. Paulo sempre arranjava um jeito de aparecer com aquela vodka vagabunda que misturava com suco em pó, cada dia um sabor diferente, sendo o de carambola o mais memorável pela sua terrível qualidade.

"Era Troscovi mesmo!", Jujuba gritou, rindo, quando lembramos daqueles dias. E Paulo, nosso eterno provedor de alegrias improváveis, sorria com aquela satisfação genuína de quem sabe que fez alguém feliz. Ele era assim: não conseguia ver nenhum de nós para baixo, sem fazer o que fosse preciso para arrancar um sorriso de nossos rostos. Era nosso porto seguro emocional.

Dezesseis anos se passaram desde a formatura. Dezesseis anos de vida adulta, de responsabilidades e de contas para pagar. Quando Mari sugeriu o reencontro da turma, foi como se alguém tivesse aberto uma janela para o passado. O grupo do WhatsApp explodiu de empolgação: "Não aceitamos não como resposta!", "Que saudade de todo mundo!", "Será que o Paulo ainda tem estoque da Troscovi?".

"Bora lá no Rei do Pastel no sábado, às cinco da tarde?", Luiz escreveu no grupo. "Mesmo local e mesmo horário dos nossos inesquecíveis encontros." A nostalgia estava presente em cada mensagem, e Paulo, como sempre, foi um dos primeiros a confirmar presença. Mas havia algo diferente em sua voz naquele áudio de confirmação. Uma hesitação quase imperceptível, um cansaço que nenhum de nós soube interpretar naquele momento.

Afinal, era o Paulo. O Paulo que todos conhecíamos: forte, engraçado, realizado. O homem que tinha um ótimo trabalho, de quem todos gostavam, que não podia ver nenhum de nós em dificuldade, sem aparecer com alguma solução. "Se tem alguém com quem a gente não precisa se preocupar, é com o Paulo", costumávamos dizer uns para os outros.

Sábado chegou, e pontualmente às cinco da tarde estávamos todos reunidos no Rei do Pastel. A mesa estava completa, menos por uma cadeira vazia que era a do Paulo.

"Ele deve estar procurando Troscovi em todos os mercados da cidade para nos surpreender", Mari justificava, conhecendo bem os hábitos do amigo. "Vocês sabem que, se tem uma coisa que o Paulo gosta, é de uma boa surpresa." E era verdade. Paulo sempre tinha um truque na manga, para nos surpreender.

Mais de duas horas se passaram, já havíamos feito até a brincadeira do Pocotó, aquela bobagem que nos divertia tanto na época da faculdade, mas o coração de todos estava na porta, esperando Paulo aparecer com seu sorriso característico e alguma desculpa engraçada pelo atraso.

"Gente, eu não estou conseguindo falar com ele", Mari disse, após a terceira tentativa de ligação. "O telefone nem sequer chama. Vai direto para a caixa postal." 

"Será que aconteceu alguma coisa?", Jujuba perguntou o que todos estávamos pensando. Rafa conseguiu contato com Jorge, vizinho do Paulo. O que ouviu do outro lado da linha fez seu rosto empalidecer instantaneamente. "Pessoal", disse, com a voz embargada, "Jorge falou que está cheio de policiais no prédio. Acabaram de arrombar a porta do apartamento do Paulo e o encontraram desacordado. A ambulância está chegando para levá-lo à emergência."

O silêncio que se abateu sobre nossa mesa foi ensurdecedor. Como assim? Por que isso estaria acontecendo com Paulo? O Paulo forte, o Paulo feliz, o Paulo que cuidava de todo mundo? Não fazia sentido algum.

Abandonamos tudo no Rei do Pastel e corremos para o hospital. Lá, soubemos que Paulo havia ingerido duas cartelas de um medicamento controlado. Tentativa de suicídio. As palavras ecoaram em nossas mentes como algo impossível de processar. "Não pode ser", Jujuba repetia como um mantra. "Por que ele faria uma coisa dessas?"

Foi no apartamento dele que encontramos as respostas que não queríamos ter. A faxineira, que tinha chegado para o trabalho semanal, encontrara Paulo desacordado no quarto. Se não fosse aquela coincidência de agenda, talvez não estivéssemos mais falando sobre ele no tempo presente.

Em cima da mesa da sala, um bilhete escrito à mão, claramente direcionado a nós: "Amigos, acordei pensando em comprar umas garrafas de Troscovi para levar para vocês. Mas estou sem força para mais nada. Gravei um áudio no celular, mas deixei salvo no rascunho. Não tive coragem de mandar. Se eu tiver feito o que estou pensando em fazer, a senha do meu celular é 4040."

Com as mãos trêmulas, Rafa digitou a senha no aparelho que estava sobre a mesa da sala. O telefone desbloqueou, revelando nossa conversa no WhatsApp com um áudio salvo como rascunho.

A voz de Paulo saiu do alto-falante com uma clareza dolorosa: "Oi, meus amigos do coração. Eu busquei no fundo da minha alma um restinho de energia para encontrar vocês lá no Rei do Pastel. Mas não dá, eu não aguento mais. Eu espero de coração ter sido bom para vocês. Eu me retiro de uma vez por todas, porque não tenho mais força para seguir em frente."

A voz que conhecíamos tão bem, continuava: "Eu sei que vocês me acham forte, engraçado, realizado. Estão vendo? Eu estou aqui disfarçando de novo. Mas ninguém é isso o tempo todo. Pode soar estranho, mas eu vou sentir saudade. Até outra vida, se é que de fato isso existe. Ah, e por favor, eu nunca soube pedir, mas se vocês puderem, lembrem de cuidar dos seus amigos mais fortes."

Naquele momento, desabou sobre nós a percepção devastadora de nossa própria cegueira. Paulo havia se tornado o mestre da arte de ser feliz para os outros, enquanto morria em silêncio por dentro. Era ele que sempre chegava com a Troscovi que nos fazia rir, organizava as viagens impossíveis com o dinheiro que não tínhamos, segurava nossa barra emocional sempre que precisávamos. Mas ninguém, absolutamente ninguém, perguntava quem segurava a barra do Paulo.

Ele havia construído uma persona tão convincente de força e alegria que nem nós, seus amigos mais próximos, conseguimos enxergar através da máscara. Aquele homem que considerávamos indestrutível, estava se fragmentando há meses, talvez anos, e nós estávamos ocupados demais sendo cuidados por ele para perceber que ele também precisava ser cuidado.

Paulo sobreviveu. 

Os meses que se seguiram foram de uma transformação profunda em nossa amizade. Aprendemos a perguntar "como você está?" de verdade, não por educação. "O porteiro está achando que eu voltei para o tempo da faculdade", Paulo brincava alguns meses depois, "sempre tem alguém aqui em casa."

E era verdade. Luiz, Mari, Jujuba, eu – todos nós havíamos compreendido que amizade não é só estar presente nos momentos de alegria, mas principalmente nos silêncios perigosos, nos dias em que ninguém responde no grupo, nos momentos em que alguém está quieto demais.

Um ano depois, organizamos um novo encontro anual no Rei do Pastel. Paulo chegou carregando uma caixa de Troscovi, que havia encomendado especialmente para a ocasião. "Pessoal, acabei de falar com uma distribuidora que tentou me vender vodka orgânica. Vocês acreditam nisso?", riu, contando sobre o vendedor que tentara lhe vender uma versão premium de nossa velha conhecida.

"Ih, estão quase chorando!" Paulo disse, rindo,  quando nos viu emocionados com sua presença. Mas por trás da brincadeira, todos sabíamos que aquelas lágrimas representavam nossa gratidão por quase tê-lo perdido e nossa determinação de nunca mais deixar nenhum de nós carregar sozinho o peso de parecer forte o tempo todo.

"Mas, gente, agora é sério. Eu quero agradecer, só agradecer. Valeu mesmo. Muito obrigado por tudo, de coração", Paulo disse, e pela primeira vez em anos, ouvimos em sua voz, não o disfarce da alegria forçada, mas a autenticidade de um homem que havia aprendido a aceitar ajuda.

Depois daquele sábado que quase terminou em tragédia, nossa turma se encontra religiosamente a cada três meses. A Troscovi continua sendo divertidamente horrível e nossa amizade continua forte. Mas agora sabemos, que por trás de cada sorriso largo, de cada piada bem contada, de cada gesto de generosidade excessiva, pode existir alguém que está se afogando em silêncio.

Paulo nos ensinou que força não é nunca precisar de ajuda. Força é ter coragem de pedir ajuda. Que verdadeiros amigos não são aqueles que só aparecem para dividir a vodka ruim e as gargalhadas, mas aqueles que ficam para dividir também o silêncio e as lágrimas.

Aprendemos que todos nós usamos máscaras em algum momento da vida. E que a mais perigosa de todas é a máscara da felicidade constante, porque é a que menos desperta preocupação nos outros. É a que permite que alguém morra um pouco a cada dia, enquanto todos ao redor comentam sobre como aquela pessoa é forte e bem-resolvida.

Por isso, cuidem dos seus amigos mais fortes. Façam perguntas verdadeiras, não apenas cortesia. Prestem atenção nos silêncios, nas ausências, nas mudanças sutis de comportamento. Lembrem-se que quem sempre cuida de todo mundo, pode estar apenas esperando que alguém pergunte, de verdade, se está tudo bem.

Porque às vezes a pessoa mais forte do grupo, é também a mais frágil. E ela pode estar apenas esperando permissão para deixar a máscara cair, para mostrar que também chora, que também precisa de colo.

Nosso Paulo ainda carrega a Troscovi para os encontros. Ainda conta piadas, ainda cuida de todos nós. Mas agora ele também deixa que cuidemos dele. E isso fez toda a diferença entre uma história que poderia ter terminado em tragédia e uma amizade que se tornou ainda mais forte e verdadeira.

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