O valor das boas intenções
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Seu José tinha sessenta e dois anos e um defeito que todos ao seu redor faziam questão de apontar: acreditava demais nas pessoas. "Esse homem é muito ingênuo", diziam os outros porteiros do prédio onde trabalhava há quinze anos. "Um dia ainda vai se dar mal com essa bondade boba." José apenas sorria e continuava a fazer o que sempre fez: cuidar de todo mundo como se fossem da sua própria família.
Era ele quem subia três andares de escada para levar remédio para dona Eulália, quando ela não conseguia descer. Era ele quem ficava até mais tarde esperando a filha adolescente do 704 chegar da escola, porque a mãe trabalhava até mais tarde. Era ele quem guardava as encomendas dos moradores com o mesmo cuidado que guardaria tesouros pessoais, e quem conhecia de cor os nomes de todos os cachorros do prédio.
"José, você trabalha demais de graça", reclamava Severino, o porteiro do turno da noite. "Essa gente ganha dinheiro e você fica aí se matando por eles. Você acha que eles fariam o mesmo por você?" José ouvia aquelas palavras todas as manhãs, quando chegava para assumir seu posto, mas simplesmente não conseguia mudar sua natureza. "Não faço esperando nada em troca, Severino", respondia, ajeitando o uniforme. "Faço porque faz bem para mim fazer bem para os outros."
Os moradores também não entendiam completamente aquela dedicação. Alguns aproveitavam, é verdade, mas a maioria ficava desconcertada com tanta gentileza genuína. "Ele deve querer alguma coisa", comentavam no elevador. "Ninguém é bonzinho assim sem querer nada em troca." E José, que às vezes ouvia essas conversas pelo interfone, apenas balançava a cabeça e continuava organizando a correspondência com o capricho de sempre.
Dr. Fernando, morador do 1202, era especialmente cético com relação às intenções de José. "Cuidado com esse porteiro", avisava a esposa. "Ele é prestativo demais. Deve estar de olho em alguma coisa." Era irônico, porque José sabia perfeitamente que Dr. Fernando estava passando por uma depressão severa desde que se aposentara. Percebia pelos olhos vermelhos quando ele descia para buscar jornal, pela forma como evitava conversas, pelos remédios que chegavam pelo correio.
Foi numa terça-feira chuvosa de julho que a vida de Dr. Fernando mudou para sempre, graças àquelas "boas intenções suspeitas" de José. Eram quase onze da noite quando o porteiro notou que a luz do apartamento 1202 estava apagada, mas o carro do doutor estava na garagem. Estranhou, porque o Dr. Fernando sempre deixava pelo menos a luz da sala acesa até muito tarde.
Uma intuição inexplicável fez José pegar o elevador e subir até o décimo segundo andar. Tocou a campainha, bateu na porta, chamou pelo nome. Nada. Foi quando sentiu um cheiro estranho vindo por baixo da porta, que decidiu usar a chave reserva que todos os moradores deixavam na portaria para emergências.
Ao abrir a porta, José encontrou Dr. Fernando desacordado na cozinha, com o gás do fogão vazando há horas. Se José não tivesse subido naquela noite, movido apenas por sua intuição de que algo estava errado, o doutor não teria sobrevivido até a manhã seguinte.
No hospital, enquanto Dr. Fernando se recuperava, ele segurou a mão de José com muita força. "Por que você fez isso?", perguntou, com os olhos marejados. "Por que se importou?" José, desconfortável com toda aquela emoção, apenas respondeu: "Porque o senhor é humano, doutor. E humanos cuidam uns dos outros."
A história se espalhou pelo prédio como um incêndio silencioso. De repente, aquela "ingenuidade" de José ganhou um nome diferente: salvação. As pessoas começaram a reparar em coisas que antes passavam despercebidas. Como ele sempre perguntava por dona Margarida quando ela não aparecia há alguns dias. Como ficava preocupado quando as crianças do 503 faziam muito barulho, porque sabia que os pais estavam se separando e elas estavam confusas.
Dona Eulália, que José ajudava há anos, foi a primeira a entender o que realmente estava acontecendo. "Esse homem", disse para a filha que veio visitá-la, "não é ingênuo. Ele é movido pelo amor genuíno, forma pela qual, esquecemos de nos mover. Ele lembra que somos todos conectados, que a dor de um afeta todos os outros."
Seis meses depois do episódio, Dr. Fernando organizou uma reunião de condomínio inusitada. Levantou-se e, diante de todos os moradores, contou sua história. Falou sobre a depressão, sobre a noite em que quase morreu, sobre como a "bondade excessiva" de José havia literalmente salvado sua vida. "Vocês sabem o que descobri?", perguntou, olhando para José, que estava vermelho de constrangimento no fundo do salão. "Que existe uma diferença entre ser ingênuo e ser humano. José nunca foi ingênuo. José sempre foi humano."
A partir daquela noite, o prédio se transformou. As pessoas começaram a se cumprimentar nos corredores, a perguntar umas pelas outras, a oferecer ajuda sem prévia solicitação. Dona Margarida, de oitenta e cinco anos, que vivia sozinha, passou a receber visitas regulares dos vizinhos. O casal do 503 conseguiu resolver seus problemas com a ajuda e compreensão dos outros moradores. As crianças do prédio ganharam uma rede de proteção informal, com adultos que realmente se importavam com seu bem-estar.
"Sabe o que aconteceu, José?", disse Dr. Fernando, alguns meses depois, durante uma conversa na portaria. "Suas boas intenções foram contagiosas. Você nos ensinou que é possível viver de forma diferente." José, como sempre, sorriu timidamente e mudou de assunto, mas por dentro sentia uma satisfação que ia muito além da vaidade pessoal.
Severino, o porteiro noturno que sempre criticava a "ingenuidade" de José, foi testemunha dessa transformação. "Eu não entendo", confessou uma manhã. "Como é que você sempre soube que valia a pena?" José pensou por um momento antes de responder: "Não sei se sempre soube, Severino. Na verdade nunca parei para avaliar isso. Aprendi a agir dessa forma com minha mãezinha, que Deus a tenha. Ela sempre me dizia que o mundo já tem maldade suficiente. Que nossa obrigação é acrescentar bondade, não mais dureza."
A história de José se espalhou para outros prédios do bairro. Porteiros de edifícios vizinhos começaram a visitá-lo para entender como ele havia conseguido criar aquela atmosfera de comunidade. "Não tem segredo", explicava, oferecendo café para os colegas. "É só lembrar que por trás de cada apartamento tem gente igual à gente, com os mesmos medos, as mesmas alegrias, as mesmas necessidades."
Hoje, cinco anos depois daquela noite que quase terminou em tragédia, o prédio onde José trabalha é conhecido no bairro como "o prédio mais feliz da rua". Não porque as pessoas que moram lá são mais ricas ou mais bem-sucedidas, mas porque aprenderam algo que José sempre soube: que boas intenções, quando genuínas, têm o poder de transformar não apenas a vida de quem as recebe, mas principalmente a vida de quem as oferece.
Dr. Fernando nunca mais teve uma crise depressiva, porque entendeu que não estava sozinho no mundo. Dona Eulália, aos noventa anos, continua morando sozinha, mas nunca mais encarou a solidão. As crianças do prédio cresceram sabendo que tinham dezenas de "tios" e "tias" que se importavam com elas.
"Sabe qual é a diferença entre boa intenção e ingenuidade?", José me disse, quando fui entrevistá-lo para esta crônica. "Ingenuidade é acreditar que todo mundo é bonzinho. Boa intenção é saber que nem todo mundo é bonzinho, mas escolher ser mesmo assim."
E talvez seja essa a grande lição que José nos ensina: que boas intenções não são sinais de fraqueza ou estupidez, mas manifestações de uma força que poucos têm coragem de exercer. A força de continuar acreditando na bondade humana, mesmo quando o mundo insiste em provar o contrário. A força de continuar plantando flores, mesmo sabendo que algumas não vão brotar.
O inferno pode até estar cheio de boas intenções, que não deram certo, mas o paraíso certamente está cheio de boas intenções que transformaram o mundo, uma pessoa por vez. E José, com seus sessenta e dois anos, é prova viva de que ainda vale a pena apostar na bondade humana.
Mesmo quando todos te rotulam como ingênuo.
Principalmente quando todos te rotulam como ingênuo.
